terça-feira, 1 de março de 2011

Mas é porque eu quero, não porque você mandou.

Sentei eu para comer em uma noite dessas e me senti tenso; muito, muito desconfortável. Tirei os fones das orelhas e me acalmei — acalme-se você também, isso aqui não é arte pós-moderna, obscura e aleijada; eu tenho um propósito com essa banalidade. Como eu escrevia, tirei os fones. E pensei sobre o porquê da tensão anterior e do alívio posterior. Concluí que, como estava eu sozinho, me alimentando, à noite, seria desvantajoso estar alheio ao ambiente. Permanecer alerta para se proteger e proteger a própria comida é imperativo, caros bípedes. Assim, instintivamente tirei os fones para evitar ser surpreendido com uma facada nas costelas. Simples utilitarismo.
A questão de fato relevante que me surgiu dessa banalidade foi da possibilidade do livre-arbítrio. Pois eu não escolhi tirar os fones. Não refleti, não ponderei; agi e pronto. O livre-arbítrio pressupõe uma livre escolha — obviamente não em todos os atos —, independente de qualquer influência material, diga-se, imediata. Imediata, como na contração muscular abrupta depois de um choque. Uma arma na cabeça não é uma influência material imediata, assim como também não o é comer sozinho à noite com fones nas orelhas.
Nas decisões mediatas, com tempo de decisão, o problema é outro. Assume-se que cada um exerce a sua vontade de acordo com a situação, sem deixar-se sem escolher (mesmo quando se diz "eu não tinha escolha", geralmente se quer dizer que as alternativas eram muito inferiores). A concepção de determinismo é contra-intuitiva, pois as pessoas percebem-se querendo e decidindo e agindo. Percebem-se livremente arbitrárias (?!).
No entanto a ciência, do outro lado do ringue e vestindo calções vermelhos, golpeia impiedosamente, fazendo escorrer cada vez mais a liberdade pelo nariz do pobre arbítrio. As decisões, que estranhamente querem os humanóides que sejam isoladas, destacadas do mundo, nada mais são que o seu corpo reagindo quimicamente aos dados sensíveis. Pobres marionetes.
A ideia de livre-arbítrio se funda na crença de um intelecto independente do corpo, de uma dualidade entre matéria e algo espiritual, intangível, transcendente (veja que os significados portugueses de mente e espírito compartilham em francês um único vocábulo: esprit; o mesmo vale para o alemão Geist). Pois a mente que percebe o mundo não percebe a si própria, não sente a si própria; é para si imperscrutável. Um braço perdido não impede a faculdade de reconhecer a perda, já uma mente perdida não saberá que se foi. Não saberá nada, pois aquilo que poderia saber não existirá mais. E o que é a mente? É o seu cérebro, caboclo — não passa disso. Observe que todo o misticismo advém de um ou outro grau de ignorância, e da relutância em admiti-la. A mente, espírito, Geist, esprit, Tico e Teco, etc não passa de lobos, hipotálamo, córtex, neurônios, connectomes. Isso não significa que sua vontade seja controlada por enzimas e impulsos elétricos. Isso significa que essas enzimas, esses choquinhos, esse peso dentro do seu crânio, são a sua vontade. Eles são você, e você não passa disso.

Mas não há motivo para desespero, garotada, nem para acreditar em um 2012 apocalíptico com você ganhando uma coleção de jogos do Gugu entregues pelo Restart. Porque o arbítrio, materialmente determinado, não é menos seu por isso. Porque ser marionete de si mesmo está longe de configurar tirania.
E porque não poder enxergar atrás das órbitas não retira a beleza do que está à frente delas.


Pietro Borghi