quinta-feira, 25 de março de 2010

"Pode ser, pode ser..."

O que é a coerência? Assumamos a definição de que é a concordância de um sistema entre suas partes. Ou, segundo meu dicionário Silveira Bueno já desfolhado e “orelhudo”, coerência é o mesmo que “acordo, não contraditório”. Isso significa que se uma parte de um sistema contradiz outra parte do mesmo sistema, ele tem falhas, pois defende posições que ataca. (huh?!)
Claro que um sistema pode passar por correções. “Τὰ πάντα ῥεῖ καὶ οὐδὲν μένει”(“tudo flui, nada permanece parado”, Heráclito); “to be great is to change, to be perfect is to change often” (“ser ótimo é mudar, ser perfeito é mudar com frequência”, Winston Churchill). Mudanças são feitas para restabelecer um estado anteriormente confortável perturbado pelo surgimento de uma situação inconveniente. Todavia, para desgraça da razão, contradições frequentemente ficam de fora da lista de inconvenientes. Aliás, muitas são defendidas primitivamente, com seus paladinos enfileirando sarissas e relhando cavalos sobre os questionadores.
Abaixo há duas questões elaboradas pela Fundação Universitária para o Vestibular (FUVEST). A primeira questão foi enunciada na seção de Português das provas de transferência de 2007. A segunda consta na prova de Conhecimentos Gerais, primeira fase da FUVEST 2010.

Questão 1

“13 Existem três tipos de pessoas: as que deixam acontecer, as que fazem acontecer e as que perguntam o que aconteceu.
John M. Richardson Jr.

Tais pessoas podem ser caracterizadas, respectivamente, como

a) conformistas, pretensiosas e tolas.
b) ingênuas, ativas e passivas.
c) comodistas, oportunistas e indulgentes.
d) acomodadas, empenhadas e alienadas.
e) despreparadas, fortes e fracas.

Questão 2

"08 A chamada Lei do Agrotóxico (no 7.802, de 11/06/89) determina que os rótulos dos produtos não contenham afirmações ou imagens que possam induzir o usuário a erro quanto a sua natureza, composição, segurança, eficácia e uso. Também proíbe declarações sobre a inocuidade, tais como “seguro”, “não venenoso”, “não tóxico”, mesmo que complementadas por afirmações do tipo “quando utilizado segundo as instruções”. Em face das proibições da Lei, a compreensão da frase: “Cuidado, este produto pode ser tóxico”

a) precisa levar em consideração que a condição suficiente para que um produto possa ser tóxico é sua
ingestão, inalação ou contato com a pele e não sua composição.
b) exige cautela, pois a expressão “pode ser” pressupõe “pode não ser”, permitindo a interpretação de que se trata de um produto “seguro”, “não venenoso”, “não tóxico”.
c) precisa levar em consideração que a expressão “pode ser” elimina o sentido de “pode não ser”, consistindo em um alerta ao usuário sobre a inocuidade dos produtos.
d) exige admitir que a condição necessária para que um produto seja tóxico é a sua composição, induzindo o usuário a erro quanto à inocuidade e ao mau uso dos produtos.
e) precisa ser complementada com a consideração de que a segurança no manuseio dos agrotóxicos elimina
sua toxicidade, bem como eventuais riscos de intoxicação.”
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O grifo mostra o verbo tão importante nestas questões: “poder”. Segundo o Silveira Bueno, “ter a faculdade de; ter possibilidade; dispor de força ou autoridade; possuir força física ou moral; ter influência, valimento”. O item b, grifado, é a resposta correta da segunda questão.
Não há necessidade de argumentos ulteriores — a advertência da FUVEST ricocheteia em direção a ela própria. Aplicamos a explicação da segunda questão sobre o verbo “poder” usado na primeira, o que resulta em “tais pessoas podem NÂO ser caracterizadas como tal e tal”. E aí surge a incoerência, pois se pode ser que as pessoas sejam caracterizadas de outra forma, não existe resposta certa, o que vai contra as premissas do exame.
O fato é que, ainda mais em uma questão com este teor psicológico, não se pode dizer incontestavelmente que uma única opção seja a correta. Nas Ciências Exatas, um enunciado como este passa sem causar maiores problemas, ainda que continue carregando um significado impreciso. Nas Ciências Humanas, há implicações culturais e conceituais e uma vastidão linguística imponderáveis para um âmbito pequeno como o de uma pergunta tão simples de múltipla escolha. O debate seria interminável, e em um ensaio dissertativo posso defender verossimilmente uma resposta considerada errada no gabarito. Os paladinos da tradição atacariam, golpeariam, esperneariam com fogo nas ventas. Mas acabariam por entortar seus martelos sobre um prego imperfurante.


Pietro Borghi